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quinta-feira, 21 de junho de 2012

Negro Profundo ( 4 )

Palavras sussuradas em tom de reza, começam a ser-lhe audíveis. Como de um sono profundo se tratasse, a consciência, pouco a pouco, despertava.
Do estéril 'nada' a memória, salvando-a, aflorava-lhe a identidade. Os cheiros, verdadeiras impressões digitais da sua infância, despertavam-na.
Deitada na casa que a vira nascer e crescer. As lamparinas piscavam a dar-lhe as boas vindas. A coberta que tinha sobre si, costurada, a pensar no seu projecto de pessoa, pela mãe, de ventre pesado, afastada de lides mais exigentes, ostentava o grande 'S'. Um enigma por decifrar: como sua mãe soubera que uma menina nasceria, a quem ser posto o nome de Samara?
Os cuidados médicos reservavam-se para os quase mortos. Quando tudo o resto tinha falhado. Gravidez não é doença. Para quê médicos? Era assim que pensava seu pai e assim lhe obedeciam.
A pouca distância, na cama de seus pais, podia vislumbrar o vulto inerte, rodeado de velas. Aos pés encontravam-se algumas mulheres, cobertas de preto da fronte até aos pés ocultos pelas negras saias, carpindo, em surdina.
Levanta-se e, apesar das tonturas, não hesita, dirige-se à cabeceira de sua mãe. Esta nunca mais lhe escovaria os longos e negros cabelos ao embalados pelas cantorias que não a deixavam quieta. Como era doce e timbrada a voz da mãe.
Enquanto lhe beijava a testa, um misto de saudade e impotência, relembrava-a como sua amiga dentro das limitações a que estava sujeita. No entanto, tinha quebrado umas quantas vezes regras 'sagradas' por amor àquela filha princesa no seu coração de progenitora.
O choro corria livre. Dava graças por lhe terem permitido entrar. No momento, bastava-lhe ficar ali, esquecida no tempo, de si, visitando o passado e deixando que a voz da dor se fizesse ouvir. A infelicidade, a perda eram dores insuportáveis.
Refugiava-se no passado ao agarrar a mão fria que a afagara inúmeras vezes...
(continua)

11 comentários:

  1. Uma pintura poética, um desenho nostálgico na dor que nunca acaba. Mas nos atormenta sempre
    Bela narrativa, Pérola
    Beijinho

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  2. Pérola boa noite!
    Consegues descrever tudo a ponto de nós conseguirmos imaginar as imagens.
    perfeito!

    Beijinho,
    Ana Martins

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  3. Um belo texto, uma bela página de um romance nostálgico.

    No entanto a última frase completa o texto maravilhosamente.


    ...Refugiava-se no passado ao agarrar a mão fria que a afagara inúmeras vezes...

    Deixando ainda a percepção que haverá mais a dizer.


    Bj!

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  4. Cá para mim o "S" era diminuitivo para "Sei lá o que aí vem".

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  5. Que dizer Pérola.... estou entusiasmada a lêr capítiulo a capítulo, e este é noltálgico como eu gosto. Obrigada,
    Bjs :))

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  6. Existem as cozinheiras de mão cheia, mas tu és uma escritora cheia de palavras deliciosas de se lerem, sou da mesma opinião fazes uma descrição tão envolvente que no sentimos a visualizar o cenário.
    Bom fim-de-semana, beijinhos :)

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  7. Samara ,a sós como o seu "eu", abriu a sua "caixa de costura" , vasculhou os carrinhos de uma vida não muito distante e desfiou-os...

    Beijos.

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  8. "visitar o passado" uma coisa qu efaço uso muitas vezes
    kis .=)

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  9. Que bem....
    Está aqui tudo: a perda, as sensações do momento de dor misturadas com as memórias...
    Entramos na história e dentro de Samara na perfeição.
    Continua!
    Beijo

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  10. O mistério adensa-se... e a curiosidade também!
    Beijos,

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