Com a caída da noite, o frio fazia-se sentir em cada pedaço de pele. Despedaçada, não encontrava palavra mais adequada. Restos de gente, Sobejos da mulher que houvera sido. Sabendo-se na ponte, abranda o passo. Inspira a humidade, mescla de maresia, tristeza e solidão. Lá em baixo, adivinha a água, calma, profunda como a negritude do seu coração. Sobe para o parapeito da vedação, senta-se. As vertigens abandonam-na como prevendo o que por aí virá. Nada receia. Nada espera. Um último desejo, sentir-se livre das suas sobras.
O som estridente da buzina acorda-a. Volta ao passeio e toma a marcha de regresso a casa. Inconsciente, dá por si já de banho tomado. Ensaia uma maquilhagem que lhe recorda a mulher de outrora. Na cama, brinca com a última caixa de comprimidos que o médico lhe receitara. Um a um, vai despindo os blisters, amontoa-os ao pé da mesa de cabeceira. Começa a refeição tardia, sem pressas. Engole cada um, dando-lhe as boas vindas, acompanhando-os com chá quente. O choque de temperaturas estremece-a, sente-se bem. As gélidas células casam-se bem com o liquido cálido a as pastilhas embrulhadas em aroma de rebuçado. Não restando nenhum dos alimentos do seu repasto, encosta-se, sorrindo...
Bonito:)
ResponderEliminarMuito bonito mas de uma tristeza muito profunda.*
ResponderEliminarUma prosa poética que descreve uma dor profunda de uma forma muito suave, ... por vezes é difícil caminhar... mas, essa "refeição" não é solução. Há que olhar para os "restos" e ver neles a beleza do coração!
ResponderEliminarOlá, Pérola... gosto imenso da sua escrita porque, é como água que jorra naturalmente de uma fonte, até a abordar um assunto tão triste e delicado, ela nos encanta! Um beijinho com carinho e amizade! Agradeço as "pérolas" que vai deixando nos meus poemas.
Nestas palavras há muito mais do que a negritude de um coração, sente-se o desespero de uma vida destroçada, perdida e sem rumo, e no final a morte. É um texto intenso mas muito triste, no entanto é uma realidade vivida e sentida por tanta gente neste mundo, tantas vezes ingrato.
ResponderEliminarBjs!
Vá lá, estava mesmo a ver que ia poluir ainda mais o rio...
ResponderEliminarArrepiante e simultaneamente doce!
ResponderEliminarUm beijo muito grande...
Mais um lindo texto....triste , diria ( não me leve a mal) que tem qualquer coisa de FLORBELA ESPANCA, de quem eu também sou admiradora.
ResponderEliminarBjs :))
Quanto ao texto: belíssimo e certeiro.
ResponderEliminarQuanto ao tema:... Ui... :((