sábado, 30 de abril de 2016

Um Olhar qualquer



Olha-se e não se vê,
vê-se e não se olha.

Comenta-se na cegueira,
cega-se no comentário.

Julga-se nos sentidos,
sente-se nos julgamentos.

Adivinha-se o que não se sabe,
sabe-se o que se adivinha.

Recebe-se o que se dá,
dá-se o que se tem.


E tu? 
Para onde olhaste primeiro?
Que te prendeu o olhar?
O cachorro?
O homem?
Um sentir qualquer nascido da pele nua?


quinta-feira, 28 de abril de 2016

tua


William Oxer

Entardece, amor,
no abraço da noite 
traficante de ilusões.

Tolda-me o sentir do Sol 
que sempre nasce
e a primavera
que sempre chega.

Penumbra-se o mar
em marés que sempre vêm,
umas como quem quer engolir a terra,
outras de mansinho,
em afagos húmidos.

Deixa a névoa encastelar-se
na própria sombra
em brumas sem diferença,
importâncias de outros.

Vem, amor,
no beijo da luz,
olha-me como se fora única
aquela que se despe,,
de alma só tua
para ti.


sexta-feira, 22 de abril de 2016

Criança


Criança minha,
do mundo 
e dela própria.

Fogem-me as letras
na maré cheia
de meus olhos,
pois se nos teus
me acho sem querer.

És-me encantamento, 
magia materializada,
nesse teu jeito
de te seres menino,
petiz para sempre
em mim.

Foto By Pérola



terça-feira, 19 de abril de 2016

Leio para ti


Paul Rader (1906 -1986)

Pousa o livro e deixa-me ser o alfabeto,
as sílabas, 
e as palavras do teu novo romance.

Emociona-te na adjectivação
do meu querer,
atreve-te por entre reticências minhas,
surpreende-te na interrogação do meu calor.

Deixa o parágrafo introdutório
penetrar em ti,
fluindo ao sabor de capítulos sucessivos
nascidos de nadas 
onde sou a criadora de tudos,
inventados,
explorados
e descobertos,
no fogo dos nossos corpos
resolvidos por mim,
pelo enredo que te conto
e onde te agitas
em vãs tentativas de rumar
a outro final.

Desta feita, sou eu a contadora,
tu, pousas o livro
e absorves-me como se te fosse mestra.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sou . . .


Sou falésia derramada no mar,
abismo de pés salgados,
ilha presa à terra
em amarras peninsulares
como medos semeados ao vento
e quereres ancorados.

Sou gruta fragmentada
por vagas (nem sempre) doces,
horizonte sem norte,
flor nascida por ali,
em declive acolchoado,
como gaivota em dia de tempestade
e poeta sem pena.

Sou mar, terra, ar 
por onde despenho a pele que há em mim.


sábado, 2 de abril de 2016

acampando


Ergues-te em ninho morno
adornado de voos rasantes
como águia em busca de companheira
e depois não me permites a entrada?


Deixa-me acampar em ti, amor,
montar tenda no chão do teu corpo,
deitar-me em ti,
bem juntinha de tuas coxas,
sentir a brisa do teu abraço
como se fossemos um só,
em abrigo teu.

Proporciona-me a entrada em ti
para que possas entrar em mim,
nesse laboratório natural,
selvagem o quanto baste,
por onde me quero alojar
sendo ave
ou outro animal qualquer.

Deixa-me somente . . .
acampar em ti.


quarta-feira, 30 de março de 2016

dentro da 'garrafa'


Vivo enfiada nesta garrafa
perdida tantas vezes,
encontrada muitas outras.

Nem sei se nasci deste jeito
ou me fui espremendo
para o seu interior.

Tudo passa,
mas nem tudo vejo
pois viajo em velocidades alheias
por itinerários desorientados.

Acordo e adormeço
dentro deste vidro
que sinto como meu.

Vã ilusão, a minha !


Há que partir limites,
atravessar fronteiras,
soltar o aconchego do abrigo
e ir,
despida de tudo,
em procura de mim.


terça-feira, 29 de março de 2016

Da espera


Aliso o mar que nos separa
e espero.

De mala feita,
vigio horizontes vazios,
despidos de ti.

Tenho a Lua por companhia
já que o Sol se cansou.

Esfarelo pensares
e coisas minhas
em tempo sem tempo para mim.

Quedo-me inteira
em vagares demorados,
pausa inspirada
na maré ausente.

Estás em mora
neste entardecimento tardio
enquanto dobro ânsias
para minguar apetites,
fomes e sedes
somente de ti.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Dos Homens


Há traços, curvas,
texturas, cheiros
e toques de diferença,
fronteiras invisíveis ou 
de muros impenetráveis.

São homens,
a humanidade em género
que se sabe diferente
e se gosta
em desigual modo.

Pois venham feministas,
sexistas
ou até machistas,
que interessa?

A essência mora 
nas grutas de cada um,
cavernas escondidas
em corpos de superfície mascarada
de bem pareceres 
ou rebeldias ostentadas.

São desigualdades necessárias,
próprias de se ser,
por onde mulher 
só é desirmanada 
em costumes,
preconceitos permitidos
por cada um.


quarta-feira, 23 de março de 2016

Danças ?



Quebras-me o ritmo
com tua passada resolvida
nesta rumba a dois.

Não me dás tréguas,
hipóteses de fuga
ou qualquer outra coisa
que não a determinação
do teu poder em mim.

Arrepias-me com mão firme 
em minhas costas abandonadas
na firmeza do teu balanço,
na loucura do teu cheiro.

És-me bússola em desorientações
de coreografia viciada
em corpos íntimos,
cúmplices aprumados
de pulsação desenfreada,
prontos para ortodoxas vontades
como insubordinados escravos.

Fixas-me em promessas 
sem música,
no silencio do baile,
por onde dançamos,
tu e eu,
como só nós sabemos.





sexta-feira, 18 de março de 2016

casa de 'brincadeiras'



A noite adormeceu à sombra da Lua
com requintes de canseira.

Levantam-se o moinho, 
a casa e os ovos também.

Cheira a chocolate,
amêndoas e um calorzinho
que não vem.

Cá para mim,
sopraram ventos de loucura
na companhia da preguiça.

Juntos, 
a poeira foi tamanha,
que,
o mundo ensandeceu 
o dia teve mau acordar
e eu fiquei de
pernas para o ar.

Não sei que faça,
não sei que pense.

Não quero acordar a noite,
de confusão está ela farta.

O meu planeta está doente
e crónica é a humanidade,
creio não gostar 
desta casa de 'brincadeiras'.



terça-feira, 15 de março de 2016

Do teu colo



Venho de longe,
de algures em parte alguma,
como brisa de bafejo em viagem,
desviada no atalho do tudo
por onde o caminho é largo.

Tardia ou vagarosa,
tenho raízes ao vento,
desembaraçada no nó do tempo
e por onde procuro.

Nascem-me cores pelo corpo,
como desabrochares desatados,
quando tu me colhes
e me dás colo.

Sou-me primavera,
perfumes e flores mais
pois se é em teu aconchego 
que me agasalho,
ganho viço 
existindo no intervalo do teu afago,
na fortaleza de te saber por aí.


sexta-feira, 11 de março de 2016

Partilha III


Confidência
"Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome."

Mia Couto

domingo, 6 de março de 2016

Sou jardim ?



Perguntas-me se sou jardim,
oceano de perfumes,
verde entremeado de cores
como arco-íris semeado por ventos
e primaveras repletas de pólen, estames e óvulos.

Ah ! 
Como se eu soubesse . . .

Basta-me esse mar cheiroso
a extravasar minha maré de pétalas,
essa cor que me agita no balanceio do teu olhar
 e ser caule tenro
em desabrochar tingido de todas as cores do mundo.

Ah!
E a primavera!

É-me a energia, 
a luz,
a semente de quem sou,
de quem fui,
de quem serei,
o colo de todos nós.

Insistes na objetividade da resposta,
e eu só sei que sou flor,
sem o rubor das rosas,
o vigor dos arbustos,
o perfume dos jasmins,
ou o atrevimento das trepadeiras.

Sou parte no todo
ou tudo em partes,
enraizado por aí,
como se fora jardim (inacabadamente) perfeito.

Pérola




sábado, 5 de março de 2016

Somos JARDIM



Acontecemos nesse jardim
onde somos árvores plantadas
de raízes afundadas.

Nossos galhos secos reinventam-se
no fogo sem chama,
braseiro rubro com perfume de jasmim.

Existimos no beijo de lábios entreabertos,
no contorno de nossos troncos floridos
por onde a seiva escorre 
em florescências sem canteiro.

Rasgamos terras e ares em gomos do tempo, 
qual semente desabrochando
em alvoradas e crepúsculos
abraçando todas as plantas e flores do mundo.

Somos um só,
JARDIM,
onde tu és o viço 
e eu a flor.


sexta-feira, 4 de março de 2016

Partilha II



Para Ti
"Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida."
Mia Couto

quarta-feira, 2 de março de 2016

Flor como se fora jardim



Fui semeada em vaso partido
por onde minhas raízes 
se enlaçavam em vizinhas
de outras espécies, 
 sem pudores de semelhanças
ou ecos de
'-não podes ser'.

De chão largo fiz minha casa,
por cima da terra serpenteava
em aprendizagens próprias de flor.

Minha casa sem muros,
vedações ou cercas,
deixava-me florescer
onde distintos e vaidosos coloridos bailavam
na brisa do vento,
ou se achegavam na humidade
de chuvas e frios sem estação.

Era flor silvestre,
 livre,
sem riscos de podas
ou pétalas desfolhadas
em mãos sem tino
ou consciências simétricas.

Sob o azul do céu abrigava-me
de outros jardins,
longe de jarras ardilosas
ou jardineiros bem intencionados
por onde a beleza
era emoldurada
em embalsamentos
que não casavam comigo.

Na liberdade de me ser
ousava sentir-me jardim 
onde era apenas pequena flor
desabrochada em campo bravio.




terça-feira, 1 de março de 2016

Cru e Nu



Despe silêncios,
verdades e palavras ocas
como se o avesso te fosse pele.

Despoja-te de quem te disseram que eras,
de quem tu pensas que és,
de quem é suposto seres.

Livra-te do cheiro entranhado
de quereres, vontades
e sonhos que não te pertencem.

Tu És, simplesmente !

Cru e Nu no viés do tempo
que te altaneia com promessas vãs,
vestes usadas sem pudor
em inconsciência só tua.

Despe-te e Sê!


segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Partilha I

O Amor, Meu Amor
"Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.

E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,

lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar."

Mia couto

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

(só) Tu


Tem beijo a vincar a alma,
marcando-a a fogo
como cicatriz que não sara.

Tem boca a saber a ti,
angustiando-me a espera
como eco que ressoa.


Tem vontade a embaciar 
o espelho de mim em ti
como o banho de pele
em que mergulho
quando te penso.

Tem esse beijo a chamar
o prenúncio de outros tantos
como suspiro derradeiro
dessa loucura que és tu.